Uma coisa sempre me dá um enorme prazer e essa é o de ler algo que me ensina e de forma profunda.
Um dia li em alguma das redes sociais (Ou terá sido em um ponto de ônibus? ou num muro?) a brilhante frase: "Nos ensinam 'não seja estuprada' ao invés de 'não estupre'".
Não preciso dizer o impacto, preciso? A ideia contida nesta simples frase é revolucionária, simplesmente porque questiona o eixo de formação do masculino, inclusive da ideia de prazer e amor no homem, da lógica política de dominação presente no ethos ensinado aos meninos durante sua longa estrada de formação em homens.
Essa frase e logo depois a clareza de como é catalogadora, desumanizadora, reificadora a ideia de mulher como um ente a ser tutelado, aprisionado, controlado, regido por o máximo possível de limitações e culpabilizado por todos os atos, como se um demônio provocador dos crimes ao qual é submetida, inclusive o mais vil deles, o estupro, tornaram claro para mim a necessidade de entender que qualquer ideia de revolução ou construção libertária que não passe pela emancipação de gênero, orientação sexual e anti-racista está fadada a ser apenas uma pincelada de transformação, como a Marianne que de nua, de seios à mostra, passa a ser uma séria senhoura após o estabelecimento da república Burguesa na França do XIX.
O Brilho da colocação da marcha das Vadias como uma reação muito bem vinda à lógica civilizacional de que mulher se veste como objeto de desejo e por isso o estuprador tem o atenuante da sedução feminina, do encanto e do feitiço do diabo-mulher que "embriaga" o pobre homem, não é um brilho exclusivo ao gênero.
É um brilho que contesta o sem número de noções limitadores do humano, reducionista do homem, do ser-humano com um sem número de determinações que ocultam conflitos de classe ao tornar inimigos homens e mulheres, negros e brancos, gays e heteros. Fazendo membros da mesma classe serem soldados de uma luta fratricida, que torna-se uma cortina de fumaça da opressão maior de classe a que estão submetidos, também pela via da moral conservadora, a grande massa de seres humanos, independente de cor, gênero e orientação sexual.
O combate à profunda educação que torna a mulher um sub-humana dentro de uma sociedade que as divida também em classes, que combate a noção da mulher como um objeto à disposição da mão do homem é também um combate à separações internas às classes que as desunem e as tornam ferramentas de desmobilização da luta contra a opressão como um todo.
O combate a cada opressão é parte fundamental da luta contra a opressão de classe, e a luta contra as noções culturais que delimitam o humano a um ser hierarquizado e oprimido,submetido a outro, seja por cor, gênero ou orientação sexual, é parte fundamental do entendimento do outro como um ser como és, como tu, não um alienígena a quem se oprime, prende, rotula, estupra.
Apoiar a marcha das vadias é ir além da moral conservadora, burguesa enfim, e é reconstruir, revolucionar a moral, a noção do outro, a noção de gênero e de nosso papel na construção de um mundo que rompa de verdade com todos os grilhões que o prendem em uma relação de propriedade, que até no âmbito do amor, e das relações sexuais é um tipo de relação econômica e de posse.
Se a propriedade é um roubo, porque a propriedade sobre o outro não o é também? Como podemos nos apropriar da sexualidade alheia, do corpo alheio, da orientação sexual alheia?
Apoiar a marcha das vadias é mais que ser feminista, é ser humano, ser humanista, ser de esquerda.
Apoiar a marcha das vadias é deixar que Marianne, que de nua foi vestida como se a liberdade precisasse de um aspecto casmurro pra ser respeitada, pudesse andar novamente nua, novamente livre, novamente plena.
PS: Marianne é a personificação da República Francesa e quando da Revolução Francesa era simbolizada de seios à mostra, como uma imagem que rompia com todos os parâmetros do antigo, do antigo regime e da moral aristocrática, porém ao se estabelecer a república burguesa ela foi paulatinamente vestida, pois não cabia bem um símbolo da república tão imoral.