Os últimos anos, em
nossos territórios, têm sido uma magnífica vitrine para as
espécies mais curiosas de oportunismo. Os gerentes do momento, na
empolgação da vitória, exigiam apoio incondicional, jogando com o
pavor da aberração tucana e da devastação que ela havia deixado
pra trás. E contra a tucanada, a favor da ordem & progresso, os
gerentes exigiam “pragmatismo”.
Mais do que qualquer
outra, “pragmatismo” se tornou a palavra de ordem do dia, sendo
invocada para justificar o aperto de mãos com o coronelismo
semi-feudal & o abandono de qualquer projeto de reforma agrária,
os acenos para privatizações tímidas ao ponto de precisarem de
novos apelidos (concessões!), o etnocentrismo renovado em Belo
Monstro, e toda uma série de sintomas familiares, demasiado
familiares.
“Sejam
pragmáticos!”, “Parem de sonhar!”, “Não se pode fazer
política sem concessões!”, e toda uma coleção de enunciados do
tipo, eram sons que jorravam dos ex-trabalhadores.
Os novos donos do
realismo não demoraram em distribuir acusações de lacerdismo,
esquerdismo, mania de princípios e outras mais aos poucos que se
atreviam a fazer oposição de esquerda ao governismo. A esquerda
fomos transformados em cavaleiros morais, nem mais, nem menos,
enquanto o pesado fardo de uma “esquerda possível”, que conhece
“a vida como ela é”, cabia aos gerentes.
Na “vida como ela
é” era preciso aceitar todas as contradições postas na mesa (dos
coronéis aos banqueiros, passando pelos herdeiros do ARENA) para
promover o maior programa de expansão e consolidação jamais visto
deste lado da galáxia.
Aos opositores,
restava uma classificação pantanosa: das mil e uma flexibilidades
admitidas na hora de negociar a “governabilidade”, nem meia foi
usada como medida para os hereges. Aqueles que desafiavam a chefia da
casa agora estavam todos com a direita, preto no branco.
O que se não se
lembraram de dizer pra si mesmos é que pragmatismo – essa arte de
avaliação de uma ação por suas consequências, já que “o único
critério de verdade é a prática”! – não é oportunismo, que
realismo não é realpolitik,
que princípios e programa não são a mesma coisa. E vamos lembrando
de que o mesmo grupo que hoje prega o abandono dos princípios em
política em nome do oportunismo invocava, não tem muito tempo, o
monopólio da moralidade política.
Justificado com uma
filosofia da omelete (afinal, se queremos um governo de esquerda é
preciso quebrar alguns ovos!), o sacrifício de ações necessárias
e da maior parte do antigo programa político do movimento, da
reforma agrária à reforma urbana, era condição necessária para a
redução da pobreza e a integração social.
As palavras de ordem
dos novos publicitários da situação, em todos os níveis de defesa
do falso pragmatismo, falam sempre em “redução da pobreza” e
“consumo de massas” nos tons mais histéricos que podem.
Um escrito recente,
por exemplo, fala no asco da “velha” classe média diante das
turbas incluídas no mercado consumidor, que gloriosamente “começaram
a fazer turismo, a comer iogurte, beber vinho, fazer escova
progressiva ou cirurgia plástica, a comprar carro, computador,
tablet, tudo o que agora podem e têm direito”. E se sustentando na
mágica da subida do consumo de massas, condena uma suposta pedagogia
iluminista a ser aplicada ao povão, finalmente alforriado das
mazelas existenciais que o perseguiam.
Belo
exemplo da nova casta de publicitários da gerência: o “monstro”
popular, massa selvagem e nomádica, criado pelo último ciclo
econômico, é a libertação das massas em seus instintos primários
e livres, contra o moralismo religioso da antiga classe média,
punhado de brancos proto-fascistas.
O
que dessa vez esqueceram de dizer pra si mesmos, quando requentam a
tática das falsas oposições (pragmatismo X lacerdismo, dessa vez
apresentado como massas-nômades X elites-sedentárias), é que
popularidade não é sinal de nada além de popularidade. Como não é
raro dizer por aí, também os líderes fascistas alcançavam
patamares inacreditáveis de aprovação popular. Mais do que isso, a
jogada dos publicitários da vez poderia passar quase despercebida:
confundimos o povo por vir, como movimento de mobilização e
libertação, com o “monstro” que descobre os prazeres do iogurte
e do tablet.
Não
se trata, jamais, de recusar o acesso das massas aos bens sociais,
pelo que já queremos evitar que nos chamem de direitistas de última
hora. De modo algum. Só perguntamos se o que queríamos no início
era uma sociedade de consumidores, nada mais do que uma sociedade de
consumidores.
O
delírio que nos querem fazer engolir é o de que consumo de massas e
reconstrução social são uma e a mesma coisa.
Assim como a eles, o conservadorismo senhorial da classe média nos
enoja. Mas também nos enoja o oportunismo desenvolvimentista, que
divide lençóis com EBX, Odebrecht, ruralistas e companhia, que
sacrificou um programa de ação concreto construído ao longo de uma
história de lutas e ruas.
Os
publicitários leem, tão de perto quando conseguem, certos
pensadores franceses de 68, mas cabe lembrar que o ídolo dos
publicitários, Deleuze, não era apenas
um gênio da especulação selvagem. Era um gênio da especulação
selvagem que até o fim da vida reivindicava a urgência de um
pensamento de esquerda, do anticapitalismo, do “devir
revolucionário” como acontecimento, que tinha como companheiro de
escrita um militante radical vindo do extinto PSU francês.
Aprendem
a reproduzir uma boa métrica, imagens barrocas e enunciados
libertários – todos eles filhos de uma geração rebelde que
pretendeu pensar maio de 68 e a “imaginação no poder” –, e
querem fazer com que agora passem a maquiar o “monstro”
consumidor.
A
libertação da gerência é a expansão da liberdade de consumo a
todos, projeto bastante magro pra quem quis atualizar uma real
ruptura social. Resta saber se é este o grande ganho civilizatório
que justifica a ruptura não com o status quo, mas com todos os
movimentos que construíram esse projeto e agora se veem jogados nas
sarjetas da história recente, dos órfãos de Pinheirinho aos
movimentos camponeses.
A
experiência não acabou, e os últimos minutos da prorrogação
sugerem que as coisas não vão tão bem assim. O “monstro”,
infelizmente, pode ter começado a sugerir a que veio. Sua coroação
política mostra bem a maravilha produzida pelos que o amamentaram,
acreditando que a integração do corpo social pelo consumo poderia
substituir a integração pela expansão do espaço público e dos
direitos sociais conquistados.
O
suposto nomadismo das massas libertas se monstra cada vez mais como o
sonho paradoxal de um dandismo intelectual que no seu romantismo
tomou iogurte por moradia, tablet por terra.
Podem
ser alegadas suas boas intenções, é verdade. Mas sabemos das
estreitas relações que as boas intenções têm mantido com o
inferno. O “monstro” são as massas consumidoras, o projeto dos
ex-trabalhadores termina em uma sociedade de consumidores, e a nova
cabeça do monstro, nascendo ao lado de Lula, não é o PT, é
Russomanno.
Oscar Ginsberg
Oscar Ginsberg é um pseudônimo de um pensador tímido com ligações perigosas com os Iluminatti, meu amigo e companheiro de militância.