Mostrando postagens com marcador feministas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador feministas. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Qualquer coisa de intermédio

A identidade do indivíduo não é algo exatamente simples de identificar, quanto mais a de um grupo ou de uma sociedade.

A miríade de formas identitárias que influenciam a construção das identidades não permite que se entenda de forma simplória o que é uma pessoa,um grupo, um coletivo,uma sociedade

O existir como homem, mulher, trans*, negro, branco, indígena, morador de Madureira, Ipanema, Porto Alegre, Pelotas, não obedece a uma simples determinação geográfica, étnica, de gênero, transgênero ou de cerne biológico.

Identidades individuais ou coletivas não nascem apenas de motivações isoladas, são um conjunto de inter influências que são também traduzidas politicamente e também se organizam e traduzem na relação com o outro, na chamada alteridade.

Identidades são construídas sim, mas antes de serem construídas no laboratório das boas intenções são interações construídas coletivamente, socialmente, historicamente e se alteram para além do controle bem intencionado da intelectualidade menos atenta a limites que permeiam nossa cultura de análise da realidade.

Universalizar conceitos pode ser mais arriscado que pular sem paraquedas do alto do Everest, ainda mais se o lastro concreto não tem uma base maior do que um palpite bem intencionado.

A identidade da população negra  como Povo Negro, por exemplo, é uma modernidade  construída no decorrer dos anos  do século XX em especial e lutou, se bobear ainda luta, contra a carga pejorativa desta categoria enquanto termo aplicado à escravos e redutor da diversidade que existia para além do fenótipo.

A categoria Negro reduzia toda a população de pele negra a membros de uma só identidade, estuprando a diferenciação entre Minas, Iorubás, Gêge, Daomé, Sudaneses, Criolos (negros nascidos no Brasil),etc.  A categoria Negro no século XIX também reduzia livres e escravos a uma mesma população, ignorando suas diferenças.

Salvo engano esta carga negativa ainda persiste e ainda divide opiniões entre a população negra mesmo após todo o trabalho militante que buscou agrupar todas as lutas dos afro-brasileiros via Movimento Negro Unificado. E mesmo após todos estes anos ainda existem lutadores que buscam a construção de outra identidade das lutas anti-racistas sob a categoria povo Preto.

Essa identidade negra ou preta  é um exemplo de como categorias construídas socialmente, com base em um misto de ação intelectual e militante, da base popular e da base intelectual, não tem nem elas mesmas uma unanimidade na construção de si mesmas como termo síntese das lutas de uma determinada população. 

E nem considerei a população não militante que não utiliza este tipo de categoria explicativa como definidora de identidade e utiliza as diversas outras categorias sociais que são utilizadas para definir a população afro-brasileira, como negão,  crioulo, pretinho, neguinho, pessoa de cor,etc, e não as tem como pejorativa como a população militante. Também não considerei quem não entende essa luta como válida, nem tampouco vê a si mesmo como alvo da discriminação e/ou opressão.Tampouco considerei questões culturais, que variam demais pra fora do confortável eurocentrismo de parte das ciências, inclusive as humanas.

Ou seja, a lógica da formação de identidades, especialmente sob o ponto de vista político, não é 
bolinho.

Podemos usar também a lógica de categorização do real a partir do feminismo também e vamos dançar em cima de categorias que incluem ou não a luta de classes,o viés racial,etc, e esta dança vai conter contradições, diversidades e como movimentos organizados têm imensa complexidade na construção de suas própria identidades, mesmo com lastro social, histórico, mesmo com amplo apoio coletivo, numérico até, e mesmo assim com tudo isso não conseguem nessa complexidade inibir o fato de apesar de parte da identidade tornar-se hegemônica ela não é unanime.


A ideia de construção da identidade coletivamente não é exatamente uma forma de imposição ou artificialização da identidade, ela é feita a partir de decisões coletivas que se organizam na luta concreta e pelas oposições e relações com a alteridade, inclusive com opositores, se consolida como identidade hegemônica.

Ninguém define uma população como Negra, por exemplo,  e sai assoviando.


A lógica vanguardista  de adotar soluções de cima pra baixo como elemento de alteração do real é um vício que não anima apenas marxistas-leninistas ferrenhos, ele tem seus efeitos nos mais fiéis fãs de Foucault, que mesmo ignorando a complexa teoria do amado mestre, insistem em construir uma luta que se propõe concreta através de uma visão que entende o real como uma forma de texto que alterando o verbo altera a correlação de forças.

Além dessa visão vanguardista levar a uma ideia de que o mundo pode ser alterado como uma espécie de frase de efeito ou numa crença de que "as palavras tem poder", há também um outro aspecto dela que é a lógica de que as pessoas, populações inteiras até, precisam da luz  da intelectualidade "capacitada".

Essa lógica da tutela pela vanguarda  de populações inteiras é muito presente na ideia de que o povo precisa da vanguarda  para ter "consciência", como se o intelectual fosse um anjo que desce da super estrutura trazendo a semente do pé de feijão pra João, enquanto este intelectual está mais pro sujeito que ri do pobre João quando este vende a vaca para ter uma semente mágica, mesmo depois do pé de feijão o levar a um reino onde o pobre João conquista sua riqueza.

À ideia da formação política se acrescenta um pouco assumido senso de que o outro não raciocina ou que lutas precisam de nós para terem visibilidade e que para isso é necessário mais do que discutir possíveis transformações de percepção do real, mas impor uma percepção do real de cima pra baixo, considerando esta imposição uma lógica quase que zapatista de libertação.

Se parte da construção artificial da identidade ou do que é o outro para depois impor esta percepção ignorando as reações da alteridade, consideradas como anátemas por desafiar algo tão legitimamente endossado no mar das boas intenções.

É a partir daí que a lógica do intelectual na torre de marfim se constrói com toda força e vapor. Porque a percepção da vanguarda de que o real é o que ela pensa ser fica mais forte do que a identificação de demandas concretas, inclusive sob o ponto de vista cognitivo e que tenham eco inclusive entre a população que se pretende atingir.

Na sanha de construir um novo mundo se busca construir um novo outro, só que ignorando que este outro já existe, em um mundo que já existe.

Se parte para uma idealização hegeliana, uma construção quase que platônica de uma realidade paralela, um mundo hermeticamente fechado, travado na ideia de sua sensacional clareza de percepção do real e voraz classificador de qualquer reação concreta como anátema, como inimiga, mesmo se esta for construída por dúvidas pertinentes, racionais, científicas até, politicas até, no campo próximo ideológico.

Na sanha de ser o outro pelo outro se esquecem do alto da vanguarda  a mediação entre identidades, a ideia do intermédio, do pilar da ponte de tédio que vai de si mesmo ao outro (Obrigado Mário de Sá Carneiro). 

Ao esquecer que na relação de alteridade não se é nem a si mesmo, tampouco o outro, e se é um misto social de construção de identidades e ações, a vanguarda  trai a si mesma na sanha da transformação global e acaba sendo um pastiche de transformação chamado gueto.

Isso vale na luta operária, na luta LGBT, na luta Feminista, em qualquer luta.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Se o que nos consome fosse apenas fome...

Eu queria falar sobre a cidade do Rio e a concepção de cidade construída desde 1902 quando Pereira Passos assumiu a prefeitura da cidade e de lá pra cá poucas vezes enfrentada, se é que o foi, e tem em Eduardo Paes um representante quase que puro sangue, mais ainda que seu criador, o ex-prefeito e atual candidato a vereador César Maia.

Queria escrever um texto focado inclusive na grata percepção do fato de meus candidatos Marcelo Freixo e Renato Cinco (este candidato a vereador) compartilham da ideia da concepção da cidade do Rio ter sido construida como um paraíso liberal e cuja função do poder público é garantir lucro, gerir bem a parte da cidade partida onde vivem os ricos e vender a ideia de cidade-cenário.

Queria também falar sobre muitos outros assuntos, sobre a campanha, sobre a necessidade de qualificar a campanha virtual, sobre o positivo da campanha Freixo no interior do PSOL, na própria alma da esquerda,etc. 

Mas para escrever isso eu teria de manter uma calma e uma paz interna, uma alegria que os temas exigem e que infelizmente não tenho como manter diante de ter-me descoberto subitamente como preconceituoso.

Até dois meses atrás ignorava a questão da Cissexualidade e continuo receoso sobre a a aplicabilidade da lógica que gira em torno da construção da categoria, diante de dificuldades que tenho a partir do caráter "eurocêntrico" desta "revisão" de categorias de explicação do mundo a partir da sexualidade "biológica" ou seja, pela redivisão da categorização entre homem e mulher para entre cissexuais e transsexuais.

A ideia toda parte do legítimo princípio da redução de opressão sobre uma minoria, sua defesa parte do legítimo princípio da defesa das minorias, mas as questões levantadas sobre essa súbita reorientação de discurso também contém uma carga enorme de legitimidade, porque é muito possível que no afã de "adequação" das categorias militantes se cometam erros metodológicos e até de julgamento de aliados, de membros e se ignora, pela tutelação, a necessidade concreta da militância de rua que por vezes nem tá por dentro das "novas ordens" que o mundo virtual abraça com a fome dos que precisam da nova etiqueta pra não serem chamados de brega na festa.

Não está claro pra mim se essa reorientação é válida, no sentido prático, e legítima, no sentido de ser uma demanda real, concreta, dos atingidos, e muito me incomoda a lógica de tutelar movimentos, me lembra por demais os defensores da "elevação da consciência da classe trabalhadora" de cima pra baixo à esquerda de quem entra. 

A lógica que me parece presente é a de considerar que os "ignorantes" que não compreendem que existe um universo que PRECISA ser redefinido entre Cissexuais e Transsexuais são o anátema da humanidade e não 'Tem consciência" e precisam ser iluminados. Não sei se a redefinição é precisa, necessária e cada vez menos sou simpático aos que defendem a necessidade e precisão.

Talvez estejam certos, talvez, mas meu recente caminho na academia me diz que "muita calma nessa hora" é um bom conselho, porque se o discurso já contém problemas, sua execução pode conter também e mais ainda, muitas vezes a ênfase na ignorância alheia pode afastar mais do que agregar no duro trabalho de construção da resistência ao mar de conservadorismo que abunda em  nossas plagas mundiais.

Enfim, aprendi que sou cissexista, só que este aprendizado está longe de ter percebido conscientemente um preconceito do que um sentimento de injustiça advinda da rotulação como preconceituoso de quem apenas discorda da categorização e da redefinição súbita de terminologia baseado em questões não atendem concretamente uma demanda real a seu redor. A menos a meu ver, esta questão é um assunto para profundo debate antes de virar dogma.

A questão toda, o incomodo todo, nasce do que recentemente tive contato via redes sociais sobre a questão da "transsexualidade x cissexualidade" especialmente retratados aqui no Biscate Social Clube onde escrevia e me afastei ao perceber que estava de alguma forma, e pela primeira vez, deslocado como preconceituoso e portador de uma "defesa de privilégios". E o incômodo chegou a lugares nunca antes atingidos ao ver as reações nas redes sociais a este texto em que, parece, reproduzi alguma espécie de preconceito grave contra os transsexuais.

É a primeira vez, repito, que sou acusado disso e especialmente da forma como estou sendo acusado. Nunca tive sequer de longe a ilusão de minha perfeição, mas sempre me honrei com a capacidade de superação de todo e qualquer comportamento preconceituoso com medidas conscientes de percepção clara de que sou privilegiado sim por ser homem, branco, alto, com educação superior,etc.

Em suma: onde havia dúvidas a serem sanadas se construiu um afastamento por  preservação, até porque a covardia fala muitas línguas.

A lição fica: Sempre há um flanco a ser atingido e sim, eu posso estar errado. 

Porém continuo com a pequena desconfiança acadêmica (que conquistei com um parco, porém focado, caminho) onde a inquietação investigativa é prima dileta dos ouvidos abertos, e muito me vem atiçando a curiosidade do quanto o discurso atinge o cotidiano das pessoas as quais se diz defender. 

Talvez por um empirismo exagerado prefiro não cometer açodamento antes de abraçar uma categoria explicativa, talvez por ser um historiador aplicado e não ter ainda contato com outros ramos das ciências humanas onde parece que o rigor metodológico não atinge esta necessidade.

Até que entenda como demanda do movimento feminista concreto, real, cotidiano, e da militância LGBT e Transsexual, fico de molho aguardando novas notícias a respeito da questão "Cissexual x Transsexual" e me ausento temporariamente da discussão sobre gênero,LGBT e Trans* no mundo virtual.

Enquanto isso continuo lendo, estudando, como tenho costume, e tentando aprender mais sobre o mundo, já que longe das torres de marfim é preciso ir além do blablablá tradicional, ao menos pra quem quer ir além do título e ser um cientista de verdade, concreto, real e respeitado por isso.E o mesmo vale pra quem, como eu, se pretende militante e atuar para mediar o contato entre o mundo acadêmico e o cotidiano d@s lutador@s e não acredita que isso seja possível pela via do erguer de barreiras, sejam elas terminológicas, raciais, de gênero, religião, linguagem ou de classe.

Se o o que nos consome fosse apenas fome...