A tradição de rebelião de escravos no Brasil é assunto que por
vezes não sai da romantização do Quilombo de Palmares, inclusive
com dramatização em folhetins televisivos de “versões” menores
e açucaradas do feito do povo de Zumbi e Ganga Zumba. A compreensão
do Escravo como mais que um sujeito passivo da ação opressora não
é assunto corrente nem mesmo na educação formal. Exceto na
academia as lutas dos negros escravos, africanos ou não e da
população como um todo é colocada em situação hierárquica
inferior às “grandes” lutas e revoltas.
Pra cada Revolta dos Malês temos mil Farroupilhas, para cada
Sabinada, milhares de Inconfidências Mineiras. Fora da exploração
parcial do feito de Palmares temos poucas menções que indiquem
algum tipo de busca de uma ressignificação do passado com os dados
contidos em diversas pesquisas produzidas cotidianamente nas
universidades e que demolem qualquer tipo de formato monolítico do
papel do escravo como vítima passiva dos senhores e do sistema.
Em “Revoltas Escravas no Brasil” de João José dos Reis temos um
belo exemplo do trabalho que ajuda a reconstruir a imagem do Escravo
como sujeito ativo de sua história. Ao apontar a tradição rebelde
na Bahia com o listar de diversas revoltas, espontâneas ou
planejadas, naquela outrora província e hoje estado, antes mesmo da
eclosão da Revolta dos Malês em 1835.
Um dos exemplos é o da situação de Salvador no período da Revolta
de 1807, onde diversos quilombos e terreiros nas matas das cercanias
da cidade ajudavam a desenvolver uma coletividade africana
relativamente autônoma alimentada pelo constante fluxo de escravos
que habilmente usavam a maior liberdade que a escravidão urbana
proporcionava.
Essa comunidade africana, e é importante notar que era
majoritariamente africana, era resultado indireto da expansão da
economia canavieira que demandou ampliação da importação de
africanos para alimentar as plantações com mão de obra. A
organização destes Quilombos não obedecia a lógica
tradicionalmente vendida como de pequenos estados, como se fossem
cópias fiéis de Palmares, mas possuíam um tipo de ocupação com
poucos moradores fixos e um fluxo constante de escravos que buscavam
escapar por algum tempo do cotidiano de exploração a que estavam
diretamente expostos. Além disso possivelmente buscavam a
convivência com outros africanos por algum tempo.
A maioria dos escravos voltavam a seus senhores, retornando à sua
rotina habitual após a “folga” obtida pela fuga temporária. Os
que ficavam corriam o risco de serem pegos por capitães do mato em
busca de recompensas ou pelas constantes batidas policiais. Assim
como os Quilombos, os Terreiros, onde as manifestações religiosas e
profanas eram o mote de atividade, eram parte dessa rede instável de
comunidades que surgiam, e apareciam , animadas pela contraditória
facilidade com que a proximidade de Salvador permitia tanto o
surgimento quanto o aparecimento da repressão.
A instabilidade não impedia no entanto que quilombos e terreiros
fossem menos ativos e importantes no cotidiano de Salvador no início
do Século XIX, sendo destino constante de escravos e homens livres
pobres em busca de cura, convivência com suas divindades e conselhos
dos sacerdotes presentes em cada local.
A repressão levada a cabo pelo Conda da Ponte, João de Saldanha da
Gama Mello e Torres Guedes de Brito, contra essas comunidades,
buscava, segundo suas palavras, combater a indulgência de senhores
que permitiam uma vida africana que afrontava a ideia de
“civilização” do então Governador e Capitão Geral da
Capitania da Bahia e de parte da sociedade baiana da época. A
severidade com que era feita a repressão, a prisão de lideranças
não tardou a levar à comunidade negra africana de Salvador a
organizar uma revolta planejada contra o Governador e sua política
de repressão. A ação de repressão provocava uma reação.
O nível de organização da revolta não era pequeno, o planejamento
de um primeiro levante para 28 de Maio de 1807, durante as
celebrações do Corpus Christi, já dá uma boa ideia de como o
entendimento das fragilidades do inimigo não era pequeno. A presença
muçulmana já se fazia presente e a organização partia também de
objetivos religiosos e buscava a fundação de um reino nos sertões
da Bahia. Outra parte dos seus planos incluía o incêndio da cidade
baixa, a casa da alfândega e uma igreja no bairro de Nazaré. Os
Rebeldes eram Haussás, etnia muçulmana que foi vitima de uma guerra
promovida pelo Xeque do grupo étnico Fulani, também muçulmano,
contra os grupos Haussás, a quem acusava de serem pagãos e
muçulmanos relapsos. Ambos os grupos viviam no Sudão Central, norte
da atual Nigéria.
Essa presença e evidências do papel da religião na revolta, como a
presença dos amuletos muçulmanos, o planejado incêndio da igreja
de Nazaré e a fogueira de imagens, a intenção encontrada em alguns
documentos da tomada de poder em Salvador com a colocação como
Governador de um líder, chamado de “bispo” pelas autoridades
brancas e que podia tratar-se de um imã muçulmano, a quem também
desejavam incluir no cargo religioso mais alto da cidade, são
elementos que indicam a junção de objetivos políticos com
objetivos religiosos.
Os rebeldes organizaram-se a tal ponto de organizar em cada freguesia
da cidade a presença de um “capitão” que teria a incumbência
de organizar a revolta em cada localidade, essa rede permitiria um
ataque na cidade que , nas palavras do Conde da Ponte, levassem ao
sucesso amplo da “guerra aos Brancos” com a provável execução
destes e criação em Salvador de um reino islâmico africano com
junção nas mãos do Governador dos poderes políticos religiosos.
O movimento foi traído por um escravo fiel a seu senhor e as ações
para a interrupção do programado levante se iniciaram no dia 22 de
Maio de 1807 e acabaram por prender a maior parte dos conspiradores e
levá-los a julgamento com diversas punições que incluíam a morte
de alguns.
As características desta revolta, que nunca chegou a acontecer,
impressionam pela similaridade com uma revolta mais famosa e mais
ampla que ocorreria quase trinta anos depois, a Revolta dos Malês ,
assim como outras tantas rebeliões que ocorreram nessa nada
tranquila província da então colônia. A presença da ideologia e
de uma liderança religiosa, da concentração em torno de um grupo
étnico que planejava ou não associar-se a outros, são elementos
comuns nas rebeliões posteriores e especialmente na mais famosa
delas.
Outro elemento importante é notar que as rebeliões, que já
ocorriam frequentemente, concorrem tanto no imaginário escravo da
época como na política pendular de repressão dura ou amena,
negociada, a partir do contexto que incluía a independência do
Haiti a partir de uma revolta escrava de grandes proporções e que
havia ocorrido entre 1791 e 1804, com vitória da população negra.
Após a independência haitiana, a política de concentração de
escravos nas grandes cidades do Brasil tornava-se uma grande “dor
de cabeça” para os governadores e na Bahia especialmente um fator
de grande preocupação. A política de repressão às rebeliões e
de administração dessa população negra variava de acordo com o
governador e tinham por objetivo administrar também a relação
entre estas rebeliões e um possível “novo Haiti” em terras
brasileiras. A possibilidade de uma revolta de monta assustava as
elites coloniais, não só brasileira diga-se de passagem.
As revoltas escravas não eram raras, muito pelo contrário e não
eram apenas ações isoladas, rebeldias desorganizadas e explosivas,
muitas vezes possuíam organização e objetivos claros. Os rebeldes
e a população africana não estava isolada, sem conhecimento do
cotidiano, sabiam das histórias de escravidão e resistência que
ocorriam no mundo. Sabiam de seu papel, buscavam resistir para
conquistar seu espaço ou negociar para obterem ganhos. Sabiam do
Haiti, sabiam da repressão, sabiam se defender, sabiam atacar.
As revoltas escravas não forma poucas, nem apenas produzidas para
fundação de reinos ou repúblicas africanas, algumas vezes apenas
para reduzirem castigos ou ganharem dias de folga, outras vezes com
um enorme grau de organização, planos definidos e uma busca de
eficiência invejável, mas todas todas elas tinham pro
protagonistas os negros, os escravos que são continuadamente
invisibilizados na história oficial, ocultos para que seus
descendentes nãos e vejam como eles, atores principais de sua
história.